"As Bruxas de Aljezur e a Maldição do Vidigal"
Em 1929, um ritual de feitiçaria terminava
com a morte de uma família de camponeses de Aljezur. O baile do Vidigal durou
três dias, acabou em tragédia e nunca foi esquecido no Barlavento Algarvio. Há
meses, foram encontrados os relatórios do município e da polícia a explicar os
acontecimentos. História de uma manhã danada, que o povo transformou em lenda.
Escondida
debaixo da cama, Custódia Tomé viu o pai matar a mãe à machadada numa manhã da
primavera de 1929. A criança tinha então 4 anos, e demorou mais de meio século
a contar o que tinha acontecido nesse dia no Monte Velho, uma fazenda isolada
junto ao lugar do Vidigal, no interior do concelho de Aljezur. «Um dia, antes
de morrer, a minha mãe contou‑me tudo», diz agora a filha, Manuela Fragoso, 62
anos. «Eu já tinha ouvido histórias sobre os meus avós, mas nada como o que ela
me descreveu. Não posso saber quanto disto é real, mas sei que ela acreditava
em tudo o que dizia. A única coisa certa é que começou tudo no baile do
Vidigal. E acabou em tragédia.»
O
Vidigal era uma comunidade isolada a sete quilómetros da vila algarvia, hoje um
ermo desabitado e, segundo os locais, amaldiçoado para sempre. Em 1929, era
palco de cerimoniais de bruxaria frequentes, a que o povo chamava bailes. «Quem
entrava já não saía», dizem os antigos.
«Eram bailes sem música, mas onde toda a gente dançava
nua dia e noite, sob o efeito de uma bebida alucinogénica», conta José António,
o Cacetada, 78 anos.
Foi
o pai, que na altura tinha 18 anos e trabalhava à jorna no Monte do Vidigal,
que lhe contou a história. «Estava lá sempre uma bruxa de Bensafrim [aldeia de
Lagos] a comandar as operações e à noite era uma barulheira de gente a gritar
completamente histérica. Conta‑se que uma vez entrou dentro da casa uma gata
faminta e lhe amputaram as quatro patas convencidos de que era um espírito
maligno. Nestes eventos, as pessoas ficavam possuídas pelo demónio.»
No
início deste ano, foi encontrado no sótão dos antigos Paços do Concelho um
conjunto de papéis que ajudam a esclarecer a lenda. Debaixo de materiais de
escritório, jaziam os arquivos da correspondência que a câmara de Aljezur tinha
trocado com o Governo Civil de Faro e o Ministério do Interior, muitos deles
marcados de confidenciais. .
A
história começa três semanas antes da tragédia. A 22 de abril de 1929, o
autarca Basílio Nobre Marreiros enviou uma carta ao governador civil de Faro a
pedir reforço policial para combater atos de feitiçaria no município: «Fui
informado que em um monte desta freguesia se passaram atos de bruxaria. Dirigi‑me
ao local e fui encontrar cinco criaturas, dando sinais de idiotice e mostras de
fome, que fiz conduzir para esta vila. No dia seguinte, dirigi‑me a outro monte
onde tive de deter mais oito pessoas, entre elas a histérica que sobre todos
exercia perniciosa influência. Era uma mulher de virtude [nome dado à época a
feiticeiras e curandeiras] de Bensafrim, que de há muito vem exercendo passiva
influência sobre os nossos habitantes, através de rituais em que se usa o Livro de São Cipriano, o que cria graves animosidades entre pessoas da
mesma família e vizinhos.» O relatório aponta outras cinco bruxas e um
feiticeiro de Alte (Loulé) que usavam recorrentemente a obra. «Peço que me seja
concedida autorização para apreender todos os livros no concelho, assim como
julgo conveniente que se faça o mesmo em toda a república.»
Entre
os cinco primeiros detidos estavam Luís Tomé, ou Luís Penico, a sua mulher,
Adriana Marreiros, e a sogra, Maria Marreiros. Adriana tinha acabado de
engravidar, o ritual serviu muito provavelmente para proteger a criança que
carregava no ventre. Foram levados para Aljezur e, após dois dias em
isolamento, os três haveriam de ser soltos e regressar ao Monte Velho, onde
moravam. Semanas depois, Luís seria convocado para nova cerimónia, onde
participaria o seu lado da família. Aconteceu no Monte do Porto da Silva, casa
materna, de 15 a 17 de maio. Na manhã de 18, acreditando que Adriana estava
possuída pelo diabo, assassinou‑a, grávida de quatro meses, à machadada. Quando
a sogra correu em socorro da filha, o genro espancou‑a com um pau, até lhe
tirar a vida. O último baile do Vidigal acabou em mortandade.
Deitada
debaixo da cama, Custódia – a filha única do casal – assistiu a tudo. Depois o
pai pediu‑lhe que saísse do esconderijo, prometendo não lhe tocar.
«O que a minha mãe contava», diz Manuela, «é que o pai
encheu um copo com o sangue das duas mulheres e, com um dedo, lhe desenhou as
cinco chagas de Cristo no peito, dizendo que agora estava protegida. E a seguir
bebeu o cálice inteiro. Depois é que vieram as autoridades detê-lo.»
Desta
parte da história não há qualquer relatório, apenas o relato da sobrevivente.
Mas há alguns factos provados. O sogro do Penico vira tudo mas conseguira
escapar‑se, fugindo para casa de um vizinho e chamando a guarda. Entretanto, o
assassino levava a filha a casa dos padrinhos, Rosendo e Catarina Portela.
«Pediu‑lhes que tomassem conta da pequena e sentou‑se na eira, à espera da
polícia», lê-se num telegrama enviado pelo administrador do concelho ao
governador civil.
A
notícia espalhou‑se pelo município como a peste. No dia 20 de maio, a pedido do
autarca de Aljezur, viajou de Lisboa o agente Miguens, da Polícia de
Investigação Criminal, a antecessora da Judiciária. Também por isso, o caso
mereceu cobertura da imprensa. Na edição de 28 de maio do semanário A Voz,
um artigo chamado «As Bruxas de Aljezur» dava conta do homicídio e clamava pelo
castigo dos feiticeiros que operavam no concelho: «É grave, muito grave, o que
estas mulheres de virtude fazem no concelho de Aljezur. Para que não tenhamos
de assistir amanhã a façanhas ainda mais funestas, as autoridades não deixarão
certamente, em nome do decoro público, passar impunes estes crimes sociais. São
perpetrados por meia dúzia de gente que diz ter poderes sobrenaturais, para
enganar os papalvos.»
Miguens
deu ordem de prisão a Penico e transferiu‑o para a cadeia de Lagos, onde, uma
semana depois, o assassino confesso da mulher e da sogra se enforcaria com os
lençóis. O auto refere ainda que a prática de bruxaria era frequente naquela
região e reforçava a ideia de que era necessário apreender todos os Livros de São Cipriano à venda no concelho, o que viria de facto a
acontecer. A 22 de junho, o agente da Polícia conseguia identificar a bruxa que
tinha presidido ao fatídico baile do Vidigal. «Trata‑se de uma Maria Inácia
Costa, residente em Bensafrim, concelho de Lagos, que há anos exerce o mister
de “mulher de virtude”. É uma criatura perigosíssima, a quem o Luís Tomé,
conhecido como Luís Penico, consultou várias vezes. Foi ela que o aconselhou a
reunir toda a família, alegando que a mãe deixara de cumprir uma promessa e
agora era necessário desfazer o enguiço.»
Aos poucos, ia‑se fazendo luz sobre o que se passara.
Ao Monte do Porto da Silva tinha acorrido toda a família Tomé, mais alguns
vizinhos que se juntaram aos rituais daqueles três dias de cerimónia.
«Tinham
tomado um líquido qualquer e, após a ingestão, sentiram todos uma violentíssima
impressão no cérebro», lê-se no relatório. «Não querem os sobreviventes dos
horríveis acontecimentos declarar quem o preparou, com o receio de que a bruxa
possa prejudicá‑los com sortilégios. Mas pela confissão de Luís Tomé sabemos
ter sido Maria Inácia a preparar a seiva.» Sobre a constituição química, nem
uma palavra. «Mas o meu pai sempre disse que tinham usado só limão, veneno para
as formigas que atacavam os trigais», diz agora José António, padeiro da vila,
o tal que era filho do rapaz que trabalhava no Vidigal. «Era um pó vermelho,
comprava‑se na farmácia por 25 tostões e misturava‑se com vinagre.»
A
casa onde o ritual aconteceu ainda existe, apesar de há muito ter sido
remodelada. Fica na frente sul do vale do Vidigal e mal se dá por ela,
escondida no meio do arvoredo. Maria Nunes, a atual proprietária, avança
informações sobre o monte antigo, e o lugar preciso onde a bebida teria sido
ingerida. «Há esta parte da casa que é de taipa, tinha a cozinha ao fundo e um
quarto anexo. O que aconteceu só pode ter acontecido aqui», e aponta para o
chão diante dos seus pés, uma assoalhada larga onde caberiam dez pessoas
sentadas, senão mais. «O que sempre ouvi dizer foi que espalharam o trigo no
chão e andaram três dias aos pulos, sem comer, e que acreditavam que estavam a
ascender aos céus.» O habitante de um monte vizinho, Manuel Vicente, juntar‑se‑ia
à família Tomé – e acabaria por ficar louco. Segundo vários relatos da
população, impossíveis de verificar, houve vários habitantes daqueles montes
que perderam a vida em situações bizarras. Sobre o Vidigal, começou a dizer o
povo, tinha‑se abatido uma maldição.
O
caso não terminou com a morte de Luís Penico, e ainda muita água rolou debaixo
da ponte. A 22 de junho de 1929, Basílio Marreiros, o autarca, envia um
telegrama ao Manicómio Bombarda, em Lisboa, a pedir o internamento de Manuel, o
irmão do homicida, que também tinha estado no baile: «Absolutíssima necessidade
internato imediato. Vítima bruxedos. Loucura furiosa. Influência perigosa. Rogo
ida urgente referido louco.» O pedido é aceite de imediato e, um ano e meio depois,
a 16 de dezembro, «o alienado» é transferido para o Manicómio Conde de
Ferreira, no Porto, onde acaba por morrer. Augusta, a irmã mais nova, também é
internada no Conde de Ferreira no final desse ano, mas não permanece mais de
uns meses. O último relatório sobre o assunto, de 1930, esclarece que a loucura
não abrandava e se manifestava «por atos de malvadez, já por mais de uma vez
tentou assassinar os filhos, com quem vive». Muita gente lembra ainda hoje a
figura da mulher quando saiu do hospital, vagueando pelas ruas, sem dizer coisa
com coisa. Ficou louca para sempre.
Muita gente lembra‑se de Maria Inácia do Carmo, a Ti
Maria Inácia Espírita, era assim que o povo a conhecia. «Íamos dar uma volta
grande só para não vermos a bruxa. Toda a gente tinha um medo dela que se
pelava.»
Francisca
Norte e o seu irmão Adelino estão a almoçar junto à casa onde cresceram – e
recordam a vida na aldeia em 1929. «Não havia estrada, nem água, nem luz. Ler
quase ninguém sabia. A bruxa lia, por isso dizia‑se que era uma mulher de
virtude.» Viúva, pobre, com três filhos para alimentar, arranjava sustento em
mezinhas e crendices. «Aquilo era uma família que estava sempre suja, ela
costumava usar saias compridas e avental, os cabelos despenteados.» De vez em
quando, deixava a canalha entregue a si e desaparecia de carroça, semanas
inteiras. Aljezur ficava a 23 quilómetros mas, para lá chegar pelos caminhos de
lama, demorava‑se um dia inteiro. «Deve ter sido numa dessas viagens que
aconteceu tudo.»
No
início de 1930, uma delegação da freguesia de Bensafrim visitou a Câmara de
Aljezur e pediu a Basílio Marreiros clemência em nome da feiticeira. O caso
haveria de se resolver com a promessa de fim de conjuros e cerimoniais, mas
nenhuma pena de prisão – até porque, como o administrador do concelho refere
num ofício, a única voz que tinha acusado Maria Inácia era a de Luís Penico,
que agora estava morto.
Custódia, a criança que viu tudo, cresceu aos cuidados
dos padrinhos, sem carinhos de maior nem a solidariedade do povo. Aos olhos das
gentes do Vidigal, era a última descendente de uma família maldita.
Não
aprendeu a ler nem a escrever, os dias a semear feijão e nas mondas do arroz no
verão. A sua libertação do passado foi o casamento, que lhe deu três filhos e
estabilidade. «Só quando eu era adulta é que conseguiu contar‑me o que tinha
sido a sua infância», diz Manuela Fragoso, filha da sobrevivente. «Ela sofreu
muito.» Na verdade, a criança ainda tinha uma avó viva, a matriarca dos Tomé,
mas laços nenhuns. «O Estado não deixou a minha bisavó ficar com a minha mãe
por ter participado também nos bailes do Vidigal. E a verdade é que ela nunca
gostou da minha bisavó paterna, tentou esconder‑me sempre da vista dela.» Nos
montes do Vidigal também não voltou a pôr o pé. Custódia Tomé morreu há dois
anos, acompanhada pelos três filhos e em paz.
Hoje,
o Vidigal tem duas casas onde não vive ninguém e as ervas há muito que
começaram a invadir as propriedades. No vale está escondido um cemitério do
Neolítico, há quem vaticine que resulta daí tanta tragédia. Há 87 anos, numa
manhã de maio, as bruxas organizaram o último baile que a povoação viu. Depois
disso, a terra foi sendo engolida pelo esquecimento. Se não fosse o acaso de
alguém entrar no sótão de uma casa algarvia, descoberto um molho de papéis
antigos, a lenda tinha‑se tornado lenda para sempre. «Mas lá que aconteceu,
aconteceu», diz José António, o padeiro. «E eu nunca acreditei em bruxas. Só
sei que ao Vidigal não vou. Aquilo é uma terra de morte e de loucura. Mais vale
não arriscar.»
Por: Ricardo J. Rodrigues 31/10/2016
Por: Ricardo J. Rodrigues 31/10/2016