Blue Living - Be water my friend..

...mais do q pessoal, reflexoes sobre a crescente desumanidade social e sobre as nossas lendas pessoais...a minha? o mar!

sexta-feira, agosto 12, 2005

Uma vida normal...


Fazia naquela altura pouco mais que vinte e cinco anos que entrara para o sacerdócio, tantos como os que tinha de idade quando me dediquei a Deus.
Era uma tarde quente de Agosto, e o meu destino era Estoi. Um antigo quinteiro do palácio de Estoi pretendia a extrema unção.
Lá chegado, num local onde antes passaram princesas e companhia, encontrava-se vazio e em ruinas, tal e qual o meu peito, naquele descrédito que me levou a fugir da mundanez da vida lá fora e a buscar refugio no convento.
O senhor encontrava-se no leito de uma cama larga de casal, de cabeceira modesta e temente a Deus.
Encontrava-se desperto e alegrou-se ao ver-me. Cumprimentou-me e guiou-me num lugar ao seu lado na beira da cama.
Pediu-me para ser rápido, não queria ficar preso, suspenso numa destas santas palavras.
Cumpri o seu desejo.
Depois, mais aliviado e respirando com dificuldade, sorriu e agradeceu.
"Sabe, houve uma altura na vida em que pensei que seguiria o mesmo caminho que você. Muitos
sofrimentos deixei por trás desse caminho, muitas palavras azedas e algumas atitudes menos recomendaveis e nada de acordo com quem realmente ama. Mas sabe? Eu amo muito a minha falecida mulher. Ainda que tivessemos alturas complicadas. Ainda que algumas noites chorei na certeza de nunca mais a ver e outras na incerteza de alguma vez a voltar a ter.
Tivemos tempos separados, entregues a outros braços. Eu achei que ela me magoou como nunca ninguém me tinha magoado. Ela sentia que eu a tinha ferido de modo que ela nunca esqueceria.
Após idas e vindas, reviravoltas doidas e reconciliações turbulentas, largamo-nos definitivamente.
Encontrei-a pouco depois, feita princesa nos braços de outro. Murchei por dentro. Perdi o norte, a minha bussola era a traição. Busquei o refugio mais próximo e aconchegante. Pouco durou.
Desencontrei-me do sentido da vida. Achei-me nos caminhos do senhor.
Até ao dia em que aconteceu.
Era a véspera do dia em que iria entrar no seminário. Acordei sobressaltado. Tinha sonhado. Faziam dois meses que não a via. Esquecera-a, julgava eu.
Não foi assim.
No dia seguinte, por coincidencia, ela procurou-me. Pretendia que lhe devolvesse alguns objectos pessoais que guardava com respeito.
Falei-lhe do sonho.
Desde esse dia ficamos juntos. Incialmente com algumas reservas, resolvendo os nossos assuntos, mas acabamos por ficar novamente ao lado um do outro."
"Mas que sonho foi esse?" - Perguntei eu.
"Bem, o que nós fizemos foi colocar nas nossas mesas de cabeceira algum objecto que nos relembrasse de tudo o de errado que tinhamos feito um ao outro. E assim, todos os dias ao acordar e ao deitar, olhavamos para o que deixavamos para trás e davamos graças por ter ao nosso lado quem completa o nosso coração. Foi com isso que sonhei."
Acabou de dizer isto e acrescentou, olhando para a sua mesa de cabeceira:
"E agora, mais uma vez, vou segui-la."
Suspirou com um leve sorriso plantado nos lábios e placidamente, cerrou os olhos.