Blue Living - Be water my friend..

...mais do q pessoal, reflexoes sobre a crescente desumanidade social e sobre as nossas lendas pessoais...a minha? o mar!

quinta-feira, março 16, 2006

O Espia Marés


Certas conversas ouvem-se a escorregar das ombreiras dos cafés, dos poiais das janelas térreas, das redes piscatórias, dos bafos de cigarrinhos sociais.
"Olha, lá vai ele de novo!"
"Lá vai o Espia Marés!!"
O Espia Marés era uma figura esguia, escura e delgada. Longilíneo como o trigo e ligeiro como uma bandeira asteada ao sabor do levante.
Sem ser muito falador, era sem dúvida um personagem mediático.
Os seus hábitos de tão simples e invulgares, eram do interesse de muitas bocas.
Todos os dias, fosse Verão ou Inverno, fizesse sol ou chuva, o Espia Marés arrancava de onde estivesse e percorria toda a linha costeira desde a praia do Peneco até à praia de Santa Eulália.
Calcorreando rochas, arribas e falésias, sempre em ritmo de passeio, admirando e pasmando como se de um turista se tratasse.
De familia que o acolhesse ninguém tinha conhecimento, e de casa com jeitos de habitação muito menos.
Contudo, o seu ar era não de uma pessoa socialmente carente, mas sim de quem passa uma boa temporada nos seus dias, e nunca lhe faltava dinheiro para uma chavena de café pingada.
Os seus olhos escuros e fundos eram a unica via de comunicação que precisava. As suas palavras eram parcas mas cordiais e educadas.
"É mais um agarrado aqui do jardim. Decerto que vive dos rendimentos da droga e dos assaltos aos turistas na praia."
"Sim! E também ouvi dizer que é um carteirista nato, só que em Lisboa meteu-se com as pessoas erradas, e lançaram uma oferta pública sobre ele. Acabou foragido por a nossa praia."
Os dias iam passando, arrastando as semanas e os meses, e com os meses os anos, e todos os dias o Espia Marés passava no passeio marginal vindo do rossio, descia as escadas de acesso ao areal e lá ia ele, mais que uma vez por dia."
Certo dia levantou-se um rumor, que tinha sido o Espia Marés a roubar do carrinho de compras de uma mulher de um pescador, o seu porta moedas. Isto porque era a única pessoa presente no estabelecimento onde a sra. deu por falta da sua bolsinha de metais redondos.
"Eu já sabia que isso ia acontecer."
"Estes agarrados não sabem com quem se meteram desta vez!!"
Reuniu-se uma multidão encabeçada pelo marido pescador da sra. lesada, e seguiram-no entre brados e protestos.
Agarraram o Espia Marés no primeiro passo que deu nas areias molhadas das marés vivas. Maltrataram-no, humilharam-no, espancaram-no. Sem perguntas. Somente raiva e ódio ruindo dos seus gestos.
Amarraram-no a um poste de uma das cabanas e deixaram-no a pão e água.
Durante este tempo todo, nem um gemido, um lamúrio ou tão pouco um porquê foi ouvido do pobre diabo das marés.
Esteve assim, gretado ao sol que nem bacalhau durante sete sois e sete luas, até que ao amanhecer do oitavo dia tinha deixado abandonado apenas a malga da água e o naco de pão seco e os nós de pescadores desfeitos. Do espia marés, nem pó.
Reuniu-se de novo uma multidão, desta vez em redor do alpendre da cabana, jurando medidas mais agressivas, conjecturando castigos para quem o tinha libertado.
"Fui eu!""Fui eu quem o deixou ir!!" - Soou a voz de uma velha mais antiga que os antigos e que todos respeitavam, pois ela sabia de tudo e do nada um pouco também.
O silêncio instalou-se com esta revelação. E velha anciã passou a explicar.
O Espia Marés era um desafortunado pescador, que nunca o chegou a ser. O seu sonho obrigou a sua filha e esposa a se mudarem para perto da costa, para aquela praia em particular.
Mas a sua felicidade foi-lhe roubada pelo mar, num dia em que o mar traiçoeiro lhe roubou a alma da filha e da sua amada esposa.
Desde então o seu timbre tornou-se carregado, como a culpa que lhe pesava. Na falta de coragem de se unir à sua metade roubada, todos dias ele passeia nos mesmos areais onde perdeu de vista a felicidade, procurando ou a coragem ou a alegria perdida.
Agarrado sim, mas ao mar e ao amor que perdera.
A multidão rumou para a praia, onde intuitivamente se julgou que o Espia Marés estivesse, pois a saudade apertara e o mar estava ali no seu chamamento.
Chegaram mesmo a tempo de ver o Espia Marés, já com água pela cintura, a caminhar por entre as vagas, a olhar para eles, sorrir, e desaparecer debaixo de uma muralha de água branca brava, para nunca mais ser visto.