Blue Living - Be water my friend..

...mais do q pessoal, reflexoes sobre a crescente desumanidade social e sobre as nossas lendas pessoais...a minha? o mar!

terça-feira, novembro 23, 2004

A galinha dos ovos de ouro...

Apesar do movimento no interior, e dos homens vestidos de fatos e gravatas da época de saldos, as janelas tinham grades. Apesar do sol de Inverno que forçava a luz a entrar, as janelas tinham grades. Apesar do sorriso burocrático dos funcionários, as janelas tinham grades.
As costas doem. As cadeiras sofrem do mesmo mal que ele. Nem um nem outro foram concebidos para aguardar tanto tempo naquela posição, aguardando um número.
Levantou-se, e aprendeu a diferenciar notas falsas de notas verdadeiras. "Interessante."
O balcão de madeira em carvalho, alto e impunente servia de encosto aos felizes contemplados com uma espera de algumas horas. E esses, em amena cavaqueira, estavam mesmo felizes.
Observou-os e comentou com o seu pai, que desinteressadamente o acompanhara:
- Não entendo. Como é que as pessoas aguentam tanto tempo aqui? Dia após dia, sempre a mesma coisa? Parece que se esqueceram que podiam estar a fazer outras coisas mais interessantes?
- São trabalhadores filho. São solicitadores e advogados. Fazem isso por subsistência. - disse em tom arrogante.
- Pois, se fazem de conta que não existe mesmo mais nada que o trabalho e o final do mês onde recebem o ordenado, um dia eventualmente, acabam por se esquecer. E assim são felizes. - e riu-se ironicamente.
- Deves ter descoberto a galinha dos ovos de ouro tu, não? Assim não precisas de trabalhar, basta estares ao lado do cuzinho da galinha, apanhares os ovinhos e já está! És de facto um moço safo!! - terminou abanando a cabeça em sinal de desaprovação.
Calou-se, e engoliu a resposta. Já sabe que aqueles assuntos dão sempre molho, mesmo agora que fala de homem para homem. Há pessoas que esperam mudar os outros, em vez de mudarem o modo como vêem os outros.
O que ele não entendeu, foi que aquelas pessoas pareciam adormecidas... Mastigadas pelas ideias e papelada. Sem sal. Sem vida. Sem luz. Sem côr.
Ele jamais queria parecer algo assim. Nem tão pouco podia compreender que alguém fosse assim.
No meio de fatos e gravatas, ou de polos e camisas, ele andava de gorro de lã virgem da Serra da Estrela, jeans folgadões e umas botas que comprara no seu sétimo ano de escola. Rotas na biqueira, mas condiziam com a blusa de malha esgravatada pelo tempo.
Para ele as pessoas normais estão erradas. O fim de semana e as férias não os únicos períodos em que um trabalhador deve gozar... Para ele a vida conquista-se todos os dias.
Há um objectivo por trás da labuta.Nas palavras sagradas, não trabalharás sem satisfação. Mas é a satisfação de aproveitar bem o tempo que foge, porque algum dia é de vez, ele tira-nos o tapete debaixo dos pés e já não voltamos. A satisfação de correr para casa para os braços de quem gostamos, ou de ir jogar uma futebolada com os filhos, com os amigos.
A espera do dia de folga, ou do tic tac de saída para viajar para junto do mar, mesmo até na hora de almoço, ou numa fuga à sucapa sem o patrão saber.
Somos senhores do nosso destino. Não viajamos num tapete rolante com direcçao já decidida. Não somos marionetas. Não são os impostos nem os srs. importantes que nos dizem o quê e como gozar o tempo.
É nossa a força motriz por trás de toda uma nação, ou mais, sejamos ambiciosos, de todo um mundo.
E Deus sabe que o dinheiro não é a força que faz o mundo andar à volta, ao contrário de tudo o que nos querem dizer..
Ele descobriu a sua galinha dos ovos de ouro, dentro de si, dentro do seu coração. E apesar de tantos dias se deitar agoniado e marejado de lágrimas com a sua esposa solidão, e acordar outros tantos sem ninguém que o acolha como ele desejava acolher alguém no seu peito, sentir-se pobre, incompreendido e injustiçado, recusa sempre o papel de vitima, dá o seu melhor sorriso, e aguarda pela proxima oportunidade de contornar os negócios, as papeladas e os burocratas, e de desanuviar do trabalho que escolheu e acarinha à borda de água da sua praia favorita. Pois é nesse jogo de xadrez entre o convencional e o outro lado, que se sente vivo e é verdadeiramente feliz.
E não se esquece do outro lado da janela.