Blue Living - Be water my friend..

...mais do q pessoal, reflexoes sobre a crescente desumanidade social e sobre as nossas lendas pessoais...a minha? o mar!

terça-feira, maio 04, 2004

...era já tarde, e o dia dormia cinzento aguardando a descida do astro rei no horizonte.
Após um solavanco mais forte antes de uma curva enrodilhada da serra algarvia, o caminho tosco e primitivo abriu-se para uma pequena habitação, que junta com o forno de lenha e a casa das alfaias, formava o monte.
À nossa espera estava um homem carregado com o peso da idade,que enquanto coçava a cabeça coroada de branco com uma mão, com a outra açenava com uma boina para o carro.
Após os cumprimentos iniciais, o compadre marreiro levou-nos para a frente da sua casa, onde desfez um pão serrano ainda morno com as mãos e o meu avô cortava uma chouriça em pequenos pedaços.
Ainda me lembro da primeira vez que visitei o compadre marreiro...comi uma melancia doce como ainda hoje ninguém conseguiu criar igual e grande, tão grande quanto um menino de 6 anos podia ser. Os seus 14 cachorros brincaram comigo a tarde toda perto da barragem, onde o meu avô pescava achegãs e a minha avó lia a revista da burda, arrojando nos pontos rendados que tecia certeiros.
Outra coisa que me recordo perfeitamente é do silêncio.. do silêncio fundo e acalmante do fim do dia. Aquela acalmia que só os pássaros cortando a aragem conseguem produzir.
Mas naquela tarde nublada e fria, esse silêncio tinha partido. O monte do compadre marreiro estava agora violado pela famosa e demorada autoestrada do sul, a A2. Os pássaros foram substituidos pelas máquinas topo de gama do nosso país em crise, a cortar a neblina,deixando para trás o seu ronronar.
"É verdade compadre carneirinho, hoje as pernas já não carregam o peso do trabalho, as mãos não querem trémulas aceitar as tarefas de anteontem..e a vista? ai, essa preguiçosa foge-me no escuro, e esconde-se do longe. Já nem dar uns tiritos posso dar... Lembra-se quando iamos ao raiar do sol para o covão da águia, bater tudo até ao penedo do buraco? Era fartura de coelhos e perdizes... fartura mesmo menino - virando-se para mim - o seu avó tinha que voltar mais que uma vez ao carro para poder continuar."
Os seu olhos pareciam os meus, segundo dizem, quando abraço o mar com o vocabulário limitado que um Homem pode ter...brilhavam, faziam inveja à lua.
"Agora? Agora Passo os dias sentado aqui à soleira, depois de dar de comer às galinhas. Porque sempre cai bem um frango na bucha de quando em vez. E daqui consigo ver as caras de quem conduz os carros que passam ali em cima... um atrás do outro... uns a fumar, outros a falar ao telefone, outros a discutir, a falar...isto vê se de tudo. Mas o curioso é que vão todos sempre com o mesmo olhar...gazeado, fixo em frente, quase sem vida. Tudo passa tão rápido que eu acho que eles nem sabem para onde vão. Eu cá não!!
Passo aqui do meu lado, olhando para cada pedra do caminho, observando como se curvam os arbustos que crescem a cada dia, disfrutando do caminho, conversando com o lugar."
A vida passou tão rápida como os carros na autoestrada, e finalmente percebo, que o importante é mesmo a viagem...o destino, esse são todas as pequenas coisas, aventuras e desventuras, amores e desamores,alegrias e tristezas.
Hoje o compadre marreiro já faleceu, e o seu mõnte está abandonado... talvez o reconheçam da próxima vez que trilharem a autoestrada a caminho do sul.. ele está lá, como tantos outros. Progredimos, somos uma especie brilhante, mas infelizmente o progresso não nos trouxe a evolução. Estamos vazios, secos por dentro.
Eu? Nunca mais me esqueci desta conversa, e relembro-a cada vez que visito o meu avô, agora coleccionador de estrelas cadentes...e nunca mais gostei de ir pela auto estrada.

04/05/04