Blue Living - Be water my friend..

...mais do q pessoal, reflexoes sobre a crescente desumanidade social e sobre as nossas lendas pessoais...a minha? o mar!

quarta-feira, agosto 10, 2005

Vincezo e Ava

Tenho um amigo que é um sério amante das belas artes. Pintura, escultura, fotografia…tudo o move com o entusiasmo de um miúdo à solta numa loja de doces.

Chamemos-lhe L.

L. decidiu no verão quente do ano passado tirar do mealheiro uns euros e presentear-se com um bilhete de inter rail.

Destino? Itália, a eterna Itália dos grandes clássicos… Da Vinci, Donatello, Miguel Ângelo, Giotto…

Passados dois dias de viagem, encontrou-se a sair da estação de San Pedro, em Roma.

Visitou todas os roteiros artísticos da cidade e inclusive a famosa fonte do Leão, eternizada por Hollywood num beijo de Carey Grant e Greta Garbo.

De seguida viajou para Veneza, percorreu canais e praças, enriqueceu a alma e aqueceu o seu espírito faminto de arte.

Certo dia deu por si, numa ruela que terminava numa pequena “piazza”, com um fontanário ao centro, coroado com uma escultura toda feita em mármore nobre, de uma jovem mulher, sentada graciosamente, como se bebesse da frescura da água que corria. Tinha longos cabelos pendidos, ondulados e uma expressão angelical, acalmante. Os seus olhos pareciam que tinham vida própria, e a sua face sorria para quem passasse.

L. observou. L. mediu. L. admirou. Contou, calculou e alegrou-se. De facto em toda a escultura encontrava-se presente a proporção dourada. Para quem não sabe, a proporção dourada é o nome dado a uma relação matemática existente na natureza, que pretende representar a perfeição estética. Representa-se por phi=1,67. Deste modo, para simplificar o exemplo, num rosto esteticamente perfeito, a altura da face, corresponde a 1,67 da largura, e assim por diante, estendendo-nos a todo o corpo. Essa é a regra da proporção dourada, e foi calculada por Da Vinci na altura do renascimento, como valorização do Homem, e na procura de uma definição inequívoca do conceito.

Voltou lá todos os dias que pode. De manhã, de tarde, de noite… Queria fotografar, queria observar os contornos das diferentes sombras, as radiais solares e lunares ou apenas o modo como o mármore polido e gasto reflectia as estrelas.

Se existem teorizadas mil formas de amar, acrescentem-lhe mais uma, pois ele passou a carregar a escultura consigo no peito.

Querendo saber tudo, pretendeu chegar à origem da estátua, da história que a gerou.

Viu uma senhora já idosa, vestindo toda de luto, e com o peso arqueado das costas. Dirigiu-se para ela. “Excuzza…”

Para seu espanto ficou a saber que a estátua até nem era muito antiga. Foi ali colocada e oferecida por presidente da câmara que tinha óptimas relações com um dos “capos” da máfia, que foi o patrocinador de tudo isto.

Acabou por aparecer pouco tempo depois a boiar num canal, assassinado por um grupo rival, procurando o controlo do poder local.

A senhora recordava-se também perfeitamente do escultor. Casou-se e tudo naquela pequena “piazza”, numa cerimónia pequena e tradicionalmente italiana. Não podem ter passado mais que 50 anos.

L. fixou todos os detalhes e voltou a encaixar a mochila aos ombros.

Dirigiu-se para uma pequena aldeia onde supostamente habitava os escultor da sua “prima donna”, e onde terminava o rasto das suas informações.

Chegou já quase ao fim do dia, o relógio da estação férrea apontava para as seis horas de Inverno, escuras e solitárias.

Em seu redor um punhado de casas.

Apressou-se, queria ainda ser recebido naquele dia. Procuraria albergue mais tarde.

Os números levaram-no até uma casa já quase fora do lugarejo, toda empedrada por fora, e uma porta de madeira escura, com o postigo a deixar escapar a dança das chamas de uma lareira que lambia o céu noturno, cuspindo fumo pela chaminé.

Pousou a mochila ao lado da entrada, em cima de toros de lenha cortada. Alinhou o cabelo e o colarinho da camisa e sem mais delongas, bateu à porta.

Não ouvia vozes, nem ruídos, apenas o arrastar vagaroso de uma cadeira nas lajes do chão interior.

A porta abriu-se sem as desconfianças da cidade. Por ali é tudo gente boa, gente de paz.

Um senhor com longas barbas brancas e um cabelo ralo e rebelde, com os óculos de ver ainda pendurados na ponta do nariz, apresentou-se à sua frente olhando-o para cima.

L. saudou-o cordialmente, e introduziu a sua história.

O senhor ouviu-o e sorriu. Entraram.

L. pernoitou por ali mesmo. Conversaram a noite toda.

No dia seguinte, iniciou o seu caminho de regresso a Portugal.

Fui buscá-lo ao aeroporto de Faro, deviam ser umas 05h30m da matina. Os meus olhos de sono mastigado reconheceram-no de imediato mal desfez a esquina do portão de desembarque.

Carregamos a bagagem para e fizemo-nos à estrada.

E foi só ai que soube a singularidade da história, e do motivo que me levou a relata-la.

Na noite em que pernoitou por casa do escultor, Vincenzo Cinzi de nome, ficou a saber que Vincenzo jovem fora em tempos apaixonado e ávido de viver, sequioso de liberdade e dísponivel para amar. E amou muito, magoou muito e outras tantas o seu sangue também jorrou misturado com as suas lágrimas.

Até ao dia em que conheceu Ava Isabella. Os seus destinos ficaram para sempre ligados desde o primeiro encontrão no meio da multidão da pachorrenta e conservadora celebração dominical.

Vincenzo era já na altura um promissor escultor, apadrinhado por um mecenas da máfia. Foi assim que surgiu o convite para a escultura que encantou L.

A escultura foi inicialmente uma dedicatória fervorosa à sua amada Ava. Quis inovar, romper as linhas clássicas e introduzir o conceito de cor nas pétridas figuras. Assim o fez, assim a criou, com linhas duras e quebradas, pouco arredondadas. A critica aplaudiu, os elogios choveram e a apoteose surgiu, bem como os convites sociais.

Aliás, foi precisamente por isso que um ano mais tarde, o casal resolveu fugir para o lugarejo até onde L. foi ter. Num desses bailes da “High Society”, um capo rival da máfia, braço direito da camorra siciliana e que, veio a saber mais tarde, esteve envolvido no misterioso afogamento do presidente da câmara que o apoiou, enamorou-se por Ava, e quis por todos os meios seduzi-la, fazendo uso desde o seu poder e riqueza ostendada, até aos mais vis ardis. Correndo perigo de vida, Ava pediu a Vincenzo que se retirassem em noite escusa para longe. Já estavam prometidos um ao outro, nenhum outro luar mudaria isso.Partiram.

Anos mais tarde, incógnito, Vincenzo voltou a Veneza, onde foi visitar a sua “piazza” e a sua dedicatória de amor.

Atónito,contou a L. como as cores desapareceram, e as linhas ásperas e quebradas dos contornos, carcomidas pelo tempo e poluição, deram origem a contornos suaves e delicados, próprios da maturidade de um amor envelhecido nos braços de quem se quer bem. A sua escultura estava completamente diferente, mas mais que tudo, mais perfeita e bela que nunca.

No seu fulgor da juventude, Vincenzo desenhou o que os seus olhos viam, e o seu coração sentia. Mas foi com o passar do tempo que descobriu que a profundidade do seu amor por Ava só cresceu, e que foi nos seus últimos dias que realmente entendeu como o tempo e o amor de mãos dadas, deixaram-no amar, e desenhar de longe a imagem que hoje ele gostaria que Ava tivesse para sempre na sua memória, e na retina de quem por acaso, desafia o tempo e a liberdade à procura do amor, errando, estrabuchando, mas ainda assim amando.

A proporção dourada existe. Está no fim do caminho de cada um.

1 Comments:

  • At 2:47 da tarde, Anonymous Anónimo said…

    ...é necessário abrir os olhos e perceber que as coisas boas estão dentro de nós,onde os sentimentos não precisam de motivos nem os desejos de razão(visivel).
    o importante é aproveitar o momento e apreender a sua duração, pois a vida está nos olhos de quem sabe ver(mais além)...**

     

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