um cantinho...
Era o meu primeiro dia de escola...numa nova escola, numa cidade que não era a minha,
num corpo que ja não era o meu, seguindo regras que de certeza também não eram.
Era bem cedo, e o dia acordara macilentamente cinzento, humido e desconfortavel.
Invarialvelmente sentia aquele caminhar pesado e lento da solidão quando caminhava por
entre as poças de água que iam surgindo no caminho, desafiando a minha destreza infantil.
Não gostava daquela cidade, mas também, e para ter de vos ser sincero, acho que nunca
gostara de uma cidade, pelo menos tanto como os amplos espaços, que correm até a vista
se cansar.
Aproximava-me sem grande vontade, sem grande entusiasmo.
À medida que a distancia até à escola iam dimuindo, como areia escoando por entre os meus
dedos, a ansiedade ia tomando de turpor o meu corpo...e os meus olhos, fixavam cada vez
mais o chão, que ia namorando com as biqueiras do meus sapatos, comprandos à vontade do
Sr. meu pai.
Por fim cheguei. Ali estava diante da escadaria principal..
Subi degrau a degrau, como um enforcado caminha para a sua condenação..tropecei e os meus
óculos cairam ao chão..inevitavelmente ouvi dois ou tres comentarios jocosos, que nem
ousei enfrentar...e que só serviram para apressar o meu ritmo.
Entrei por entre as largas portas envidraçadas, que deixavam passar a fusca luz do dia
que imitara a minha preguiça e se recusava a nascer.
Os corredores compridos, decorados toscamente por cacifos dos seus dois lados, estavam
nesta altura, tranquilamente vazios.
Que visão estranha aquela, que ainda hoje se encontra queimada na minha retina.
Aproveitei para procurar a sala onde deveria ter a minha primeira aula.
Dei por mim a subir uma escadaria, separada da rua por uma janela que a desnudava para a
rua na sua totalidade. PErcebi que não devia ser das zonas mais concorridas do estabele-
cimento de ensino do estado, mas segui até ao topo sem hesitar uma vez que fosse, o que,
vos digo de toda a certeza, era muito raro acontecer.
"Biblioteca", dizia um letreiro carcomido pelo tempo, e vestido de pó. Aquela hora nem
uma alma penada se aventurava por ali, até porque essa conversa de eternidade deve ter
muito por onde nos ocupar ate darmos por nós a matar saudades da terrivel vida que deixamos
nas páginas bafientas de um livro de biblioteca de escola.
Do lado oposto a entrada para a Biblioteca, havia um recanto na parede, onde morava agora
um timido raio de Sol, que descobriu o acolhedor refugio.
Caminhei na sua direcção até sentir o conforto morno do seu calor, reflectido na parede
e por ali me encostei, a ouvir as suas lendas, as suas fábulas, as suas aventuras.
Deslizo e sento-me no chão de olhos fechados, a imaginar quantas pessoas estariam naquele
preciso momento a fazer o mesmo que eu, ou até quantas estariam vestidas de maneira igual
e dessas todas que estivessem a fazer o mesmo que eu e vestidas de maneira igual, quais
as que seriam confundidas comigo na rua, ou até pelo lunático Sr. meu pai que só conhecia
de vista.
O toque de entrada soou, mas eu fingi não o ouvir, nada me prendia aquele lugar...parti a
viajar...
Muitas pernas por ali passaram..e algumas até se detiveram de pasmo...mas mais uma vez não
lhe prestei atençao porque não passavam de sombras no meu sonhar.
As horas foram passando..e de tudo eu via o que queria..as formas dominava-as eu como se
de simples magia.
Eram asas as que criei naquele tempo que por ali fiquei, simplesmente porque desejei.
Assim fui crescendo e as artes de voar sem em nada tocar, simplesmente pairar por entre
o dia,os tempos quotidianos..
Corria solta a minha imaginação, qual nascente de montanha, qual oceano aberto.
O toque do final do dia soava, puxando me donde quer que eu estivesse, de novo ao cinzento
real.
Levantei-me, lentamente, pois a pressa de chegar a casa também nunca era muita..."ninguem
gosta de ser chamado mais que uma vez por um nome que não é o seu..e de certeza que aquelas
quatro paredes escuras, abrigo de uma familia de neandertais - a minha - são tudo menos
um lar" pensei para os meus botões...e um sorriso mais leve que o meu pesar, escapou-se
sem o poder conter.
Levantei a face e arrebitei os meus grandes olhos verdes para me certificar de que ninguem
me vira num momento tao intimo e pessoal.
Mas os dias têm os seus momentos mágicos, e era chegada a altura da magia se soltar naquele
dia...quando o Sol beijou a Lua na testa, enquanto sumia na linha horizontal, que sempre foi o
maior desafio que a minha imaginação enfrentou.
Não senti medo...uma certa ansiedade talvez, um tremer leve das mãos e um grito mudo das pernas
que queriam ceder, apossaram-se de mim de vez.
Ali estava eu, cara a cara com um olhar tão profundo, tão profundo...que me mostrou num segundo
toda a eternidade...e tudo o que mais havera de vir. O meu peito galopava..o meu coraçao queria
saltar pela minha boca...a respiraçao tornou se pesada...e o ar sufocante.
As palavras? Onde estavam elas?
Eu soube entao, que o meu tempo havia chegado...o tempo em que as horas não fazem sentido, e o
mundo ganha cores que nunca existiram antes...o tempo em que só a Lua nos compreende e guia,
e as estrelas brilham até demais, afugentado o sono..que nunca mais sera o mesmo...o tempo
em que o sonho e o real se misturam num entrelaçado de sensações...o tempo em que as palavras
deixam de fazer sentido e nos atraiçoam, e os gestos nos fazem sentir tolos, desajeitados.
O tempo em que até o mais cobarde se torna heroi, e o mais adulto se torna criança..havia chegado
e eu soube naquele instante que o que eu pensara ser meu nunca o fora...era agora teu.
...nunca se sabe quando estamos a viver um sonho.
Running out of ways to run,
I cant see I cant be,
over and over under my skin,
in my shell i wait and bleed*
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