Blue Living - Be water my friend..

...mais do q pessoal, reflexoes sobre a crescente desumanidade social e sobre as nossas lendas pessoais...a minha? o mar!

quarta-feira, abril 21, 2004

O meu segredo....

“Na praia a leste da ilha existe uma ilha, com um gigantesco templo, cheio de sinos”, disse a mulher.
O menino reparou que ela vestia roupas estranhas, e tinha um véu que lhe cobria os cabelos. Nunca a vira antes.
“Já viste este templo”, perguntou ela. “Vai lá e conta-me o que achas dele.”
Seduzido pela beleza da mulher, o menino foi até ao lugar indicado. Sentou-se na areia e olhou o horizonte, mas não viu nada além do que estava acostumado a ver: o céu azul e o oceano.
Decepcionado, caminhou até um povoado de pescadores vizinho, e perguntou sobre uma ilha com um templo.
“Ah, isso foi há muito tempo atrás, no tempo em que os meus bisavós moravam por aqui”, disse um velho pescador. “Houve um terremoto, e a ilha afundou no mar. Entretanto, embora já não possamos ver a ilha, ainda conseguimos escutar os sinos do seu templo, quando o mar os faz balançar lá no fundo.”
O menino voltou para a praia, e tentou escutar os sinos. Passou a tarde inteira ali, mas só conseguia ouvir o ruído das ondas e os gritos das gaivotas.
Quando a noite chegou os seus pais vieram buscá-lo. Na manhã seguinte, ele voltou a praia; não podia acreditar que uma bela mulher pudesse contar mentiras. Se algum dia ela voltasse, poderia dizer que não vira a ilha, mas escutara os sinos do templo, que o movimento da água fazia tocar.
Assim se passaram muitos meses; a mulher não voltou, e o garoto esqueceu-a; agora estava convencido de que precisava descobrir as riquezas e tesouros do templo submerso. Se escutasse os sinos, saberia a sua localização, e poderia resgatar o tesouro ali escondido.
Já não se interessava pela escola, nem pelo seu grupo de amigos. Transformou-se no gracejo preferido das outras crianças, que costumavam dizer: “ele já não é como nós. Prefere ficar a olhar o mar, porque tem medo de perder nos jogos”.
E todos riam, vendo o menino sentado a beira da praia.
Embora não conseguisse escutar os velhos sinos do templo, o menino ia aprendendo coisas diferentes. Começou a perceber que, de tanto ouvir o ruído das ondas, já não se deixava distrair por elas. Pouco tempo depois acostumou-se também aos gritos das gaivotas, ao zumbido das abelhas, ao vento batendo nas folhas das palmeiras.
Seis meses depois de sua primeira conversa com a mulher, o menino já era capaz de não se deixar distrair por nenhum barulho – mas tampouco escutava os sinos do templo afundado.
Outros pescadores vinham falar com ele, e insistiam: “nós ouvimos!”, diziam.
Mas o menino não conseguia.
Algum tempo depois, os pescadores mudaram de conversa: “estás muito preocupado com o barulho dos sinos lá em baixo; esquece isso e volta a brincar com os teus amigos. Talvez apenas os pescadores consigam escutá-los.”
Depois de quase um ano, o menino pensou: “talvez estes homens tenham razão. É melhor crescer, tornar-me pescador, e voltar todas as manhãs para esta praia, porque passei a gostar dela” e pensou também. “talvez isto tudo seja uma lenda, e – com o terremoto – os sinos se tenham quebrado e jamais tornem a tocar”.
Naquela tarde, resolveu ir para casa.
Aproximou-se do oceano, para se despedir. Olhou mais uma vez a natureza, e - como já não estava preocupado com os sinos – pôde sorrir com a beleza do canto das gaivotas, o barulho do mar, o vento batendo nas folhas das palmeiras. Escutou ao longe, a voz dos seus amigos brincando, e sentiu-se contente por saber que logo estaria de volta aos jogos de infância.
O menino estava contente, e – da maneira que só uma criança sabe fazer – agradeceu por estar vivo.
Tinha a certeza que não perdera o seu tempo, pois aprendera a contemplar e reverenciar a Natureza.
Então, porque escutava o mar, as gaivotas, o vento, as folhas das palmeiras, e as vozes dos seus amigos brincando, ouviu também o primeiro sino.
E outro.
E mais outro, até que todos os sinos do templo afundado tocaram, para sua alegria.
Anos depois – já um homem - ele voltou à aldeia a à praia da sua infância. Não pretendia resgatar nenhum tesouro do fundo do mar; talvez aquilo tudo fosse fruto da sua imaginação, e jamais tivesse escutado os sinos submersos numa tarde perdida da sua infância. Mesmo assim, resolveu passear um pouco, para ouvir o barulho do vento e o canto das gaivotas.
Qual não foi a sua surpresa ao ver, sentada na areia, a mulher que lhe falara da ilha com o seu templo.
“O que faz aqui?”, perguntou.
“Esperava-te”, respondeu ela.
Ele reparou que – embora muitos anos já se tivessem passado – a mulher conservava a mesma aparência; o véu que escondia seus cabelos não parecia desbotado pelo tempo.
Ela estendeu-lhe um caderno azul, com as folhas em branco.
“Escreve: um guerreiro da luz presta atenção aos olhos de uma criança. Porque elas sabem ver o mundo sem amargura. Quando ele deseja saber se uma pessoa ao seu lado é digna de confiança, procura ver como uma criança a olha.”
“O que é um guerreiro da luz?”
“Tu sabes”, respondeu ela, sorrindo. “É aquele que é capaz de entender o milagre da vida, lutar até ao final por algo em que acredita, e – então – escutar os sinos que o mar faz tocar no seu leito.”
Ele nunca se julgara um guerreiro da luz. A mulher pareceu adivinhar o seu pensamento: “todos são capazes disso. E ninguém se julga guerreiro da luz, embora todos o sejam”.
Ele olhou as páginas do caderno. A mulher sorriu de novo.
“Escreve sobre o guerreiro”, disse ela.
(...)
Já era noite quando ela acabou de falar. Os dois ficaram a olhar a lua que nascia.
“Muitas coisas do que me disse contradizem-se”, disse ele.
Ela levantou-se.
“Adeus”, disse. “Tu sabias que os sinos no fundo do mar não eram uma lenda; mas só foste capaz de escutá-los quando percebeste que o vento, as gaivotas, o barulho das folhas de palmeira, tudo aquilo era parte do badalar dos sinos.”
“Da mesma maneira, o guerreiro da luz sabe que tudo à sua volta - as suas vitórias, as suas derrotas, o seu entusiasmo e o seu desânimo – faz parte do seu Bom Combate. E saberá usar a estratégia certa, no momento em que precisar. Um guerreiro da luz não procura ser coerente; ele aprendeu a viver com as suas contradições.”
“Quem é a senhora?”, perguntou.
Mas a mulher já se afastava, caminhando sobre as ondas, em direcção à lua que nascia.


in Manual do Guerreiro da Luz
de Paulo Coelho